terça-feira, 18 de outubro de 2016

Deixe que chova

Vocês também fazem algumas coisas calculando o tempo que vai levar, pensando em algum destino final, que seria o seu próprio tempo de descanso ou um simples encaixe para próximas tarefas?


Eu não sei, já tive épocas em que eu listava com caneta minhas obrigações diárias/semanais e sentia o maior prazer em riscá-las quando resolvia. Não que eu tenha perdido a prática, isso ainda me deixa um sentimento de dever cumprido ou algo que o valha, mas alguns dias são tão pesados que simplesmente não há o mínimo foco pra nada. Na verdade, não há uma boa explicação para a falta de organização, mas o fato é que, então, eu troco a lista por um tempo de silêncio deitado na cama ou sofá, até que as coisas se organizem na mente e que eu saiba que quando eu levantar, o foco vai estar lá e aí eu sei o que fazer. Você deve estar pensando: “Um tempo? bom, isso é relativo! Queria deitar por seis meses e aí eu descubro”. Pois é, mas o que ocorre é que estou falando de coisa de dez minutos, não pode ser muito mais. Ou poderia, mas aí teríamos que começar um novo texto sobre política, sociedade, cidades, trabalho e como tudo isso afeta nosso tempo e organização pessoal. O que vai ser, afinal, dessa introdução?



Eu tomei uma tempestade hoje, e o texto é só sobre isso. Entendeu? Eu não sei como aconteceu, pois, mesmo que seja difícil pôr em palavras, acreditem que eu tinha tudo programado. Mas aí uns dias atrás eu soube que precisaria pagar uma conta da viagem passada. Eu já tinha esquecido dessa e agora, acabei de lembrar de outra. Oitenta e sete reais pra um amigo, vou mandar mensagem avisando que não esqueci - Ok, avisado. Na viagem, deixamos cair um dinheiro coletivo e estamos pagando até agora essa brincadeira. Tinha outra conta, de uma passagem de ônibus que comprei num cartão de crédito de outro amigo. Eu não uso essa ferramenta acreditando me safar de umas roubadas, mas aí hora ou outra, me submeto do mesmo jeito; exatamente igual, ou pior, quem sabe. Mas bem, transferi, voltei pra casa e mandei o comprovante. Ao mesmo tempo abri um e-mail com o reaviso de débitos da luz. Não dei muita bola, uma hora eu iria deitar novamente naqueles dez minutinhos e aí lembraria, daria um jeito. E foi hoje, mas hoje foi alguns dias depois de eu raspar um carro que não me pertence e descobrir a conta que viria nisso. Hoje também foi alguns dias depois de perder bastante dinheiro a troco de driblar burocracias para poder continuar trabalhando - e pagando contas. Mas não pense em crise, pense que existem uns boletos e que o céu estava ficando muito escuro e o vento aumentando.



A lotérica perto de casa era perfeita pra minha conta de tempo, cálculo, cumprimento de tarefas e enfim, destino. O vento aumenta, três pessoas na minha frente. Tá tudo certo, mas, espera! “Cadê aquele senhor que fica sempre no caixa número três? Ele é muito ágil”. Tem pessoas que curtem mesmo fazer as coisas rapidinhas, eles mandam uns movimentos de mãos que desacreditaria qualquer futurista do século passado que vivia falando dos robôs fazendo absolutamente todas as tarefas dos humanos. Trinta segundos se passam, o vento aumenta e o céu fica ainda mais escuro, mas uma pessoa termina o atendimento, então tá tudo certo ainda. 

“Quero a mega sena hoje! Acumulou, é? Mas que belezinha!”. De trás, na fila, me sentindo pequeno, lanço um olhar que refletia tanto a realidade das ínfimas chances daquela pessoa ficar rica, como minha pobre inveja da posição dele no atendimento. Mas aí a pessoa, que nessa altura já me irritava, decide jogar em outros dois jogos! O tempo passando e eu começando a crer que talvez ele tenha alguma chance de ganhar, afinal. Outra pessoa é chamada no caixa um, serei o próximo. Já um pouco desesperado, tentando refazer contas do tempo dentro da minha cabeça, uma senhora entra com um guarda chuva virado ao avesso e fazendo algum comentário comum sobre o vento e água atacando de lado. Mas ok, eu escutei garoa, não deixava-me abater. As duas pessoas que estavam sendo atendidas saem juntas e tenho a oportunidade de escolher para onde vou. 

Obviamente, já tinha notado que a mulher do caixa um estava mais focada e pra que ir no dois, se o um está aberto? É a ordem do mundo, quem sou eu nesse momento pra desafiar?



Papéis em mãos, deixei eles retinhos pra passar rapidasso naquela fresta entre os dois vidros. Vocês já viram como sempre enrosca? Pois é sempre uma batalha difícil, mas não para quem estava perdendo a guerra do tempo e se preparou intensamente para aquele momento. Os papéis entraram rapidamente, sem nenhuma contenção. Já aviso que é débito, que pode somar tudo. “Ah, tem esse condomínio atrasado, preciso calcular aqui”. Sim, estava tudo atrasado! As contas, a vida. Porém, a calculadora é daquelas grandes, com teclas que não correm o risco do dedo acidentalmente bater em lugar não desejado e o resultado sai de imediato. Vai dar tempo, pensei. Mas faltava ainda outros boletos, quando por alguns segundos eu entrego-me ao pensamento de que “talvez eu tome uns pinguinhos, mas nada demais”. A esperança é mesmo a ultima que morre, já diria a sabedoria popular. 

E assim morreu. Começou a chuva de uma maneira muito intensa, com muitas rajadas de ventos que traziam água até 5m pra dentro da lotérica, contando com 1,40m da marquise. Não poderia acreditar e perdi completamente meu foco interno dos cálculos e de toda minha programação de chegar em casa seco, fechar as janelas, comer alguma coisa, sentar no sofá, ligar o computador, ler alguma besteira pra depois ver o que faria no resto do dia. O mundo caiu, que não consegui ficar quieto e desabafei com a mulher que me atendia. Ela não deu a mínima, eu entendo. Eu só falei sorrindo, numa mistura de tragédia e comédia exposta num semblante decepcionado que, achava que não iria me molhar hoje.



Apenas caminhei no caminho. Me molhei; bastante. Mas, deixe que chova.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Época de abacate


Confesso não ter um mapa ou um lembrete da minha cabeça para me colocar em sintonia com as épocas das frutas. É a época de eleição, eu me prestei ao serviço, já estava mesmo de todo perdido. Mas voltando ao princípio, sem jogo político, recebo um convite para buscar abacates. Estão em abundância, caindo aos montes. Antes do possível, uma árvore inacessível, completamente carregada, um sofrimento escusado: "não há o que possa ser feito, não serei acusado". Terei a minha chance. A guacamole sempre mágica ou um creme batido com melado de cana, já penso em sabores, em abrir a casca com jeito, em pequenos prazeres.

Bato palmas no portão e, em um segundo penso há quanto tempo não usava as mãos nessa função. Vem os cachorros pulando, gatos chegando e aceito um chá; é mais do que óbvio. Escutamos alguns discos, eu sou apresentado ao terreno, vaso a vaso, árvore a árvore. Um pote com terra da compostagem guarda mudas que descubro ganhar; tem até alho poró. Aceito então o pão integral e a torta de banana, passada do ponto apenas nas bordas, ali onde o sabor transborda. 

Comentamos política, citamos os rachados, os problemas comparados, olhamos nos olhos e sejamos sinceros: estampamos na cara nossas próprias falhas. Então abrimos alguns livros, transportamo-nos pro além, já penso em muitos alguéns e a tarde passa como horas que não pertencem a ninguém.
Despedimo-nos com sorrisos, afinal são verdades indiscutíveis, se estamos ainda vivos é pelos pequenos momentos incríveis.

O abacate eu acabei esquecendo. E é engraçado que continuo escrevendo pra exercitar a memória, pra não terminar mal a história. Mas eu esqueci; com o perdão das péssimas rimas, de toda forma, sorri.